Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Conto

O meu ‘Jeep’

O Jeep foi o primeiro carro que alguma vez tive em vida. Sempre tive um fraco pelo Jeep, de preferência descapotável, razão porque cedo fui coleccionando umas coroas, ou seja, escudos, para adquirir um automóvel daqueles em segunda mão. Decidi comprá-lo, quando a família Cardina retornou à metrópole. Desgostado de não poder mais ver a Gorete, o Jeep se me tornou uma consolação.

As minhas poupanças eram tão poucas, que não me podia dar ao luxo de querer um Jeep dos que havia nos stands. Não obstante, sentia-me confortado por ter poupado dinheiro para adquirir o veículo naquelas condições.

O meu Jeep era da geração Willys. Vendeu-mo o Zé João por cinco escudos. Um preço então pesado para o meu bolso. Mas paguei-o, porque fosse o que fosse, desacompanhado daquela miúda, mal me suportava sem aquele Willys.

O meu Jeep era todo pintado cinzento-metálico, que muitos não colhiam com agrado, mas ainda hoje deve andar na parada. Desde que o Zé João decidiu pô-lo cá na rua a vender, o cinzento-metálico tornava o veículo despercebido. O cinzento-metálico era uma cor que não caía bem à vista de qualquer um. Mas, puxa! Eu queria o Jeep tal como estava, pois do jeito que ele aparentava herdara a discrição do meu discreto feitio. Nunca tive inveja ao Peugeot do meu pai ou ao Volkswagen do meu tio António. Nunca senti a mínima inveja ao Volkswagen branco do Marrupa. O Volkswagen do Marrupa, com os seus grandes faróis traseiros marcava presença. E todos os meus amigos de infância o reclamavam como sendo o seu carro da vida.

Pese aquele feitio pomposo nada me interessava no carro do Marrupa, afora o facto exclusivo dele ser o padrinho de baptismo do meu irmão. Confesso que bastantes vezes resisti a ir em boleias alheias, não fosse a obsessão de querer um Jeep em segunda mão para mim.

Enquanto não tivesse o negócio arrumado, juro que mal pregava os olhos. Sofri bastante antes que o Jeep quedasse em minhas mãos. Tive insónias, delírios e alucinações, com algumas paranóias de permeio, pois o Zé João se fartara de avisar-me que o ia entregar a outro interessado porque não me mostrava flexível a fechar o negócio.

Qual quê! Qual carapuça? Era mais chantagem do que outra coisa. O tipo andava teso e sem outro comprador. Mas a chantagem que me causava tais doenças psíquicas resultava, porque eu andava apaixonado e já muito antes morria de amores por aquele Jeep, que pelo tempo que correu o nosso romance portou-se com lealdade, antes de se decidir ou consentir a partir nas mãos do desconhecido mbava (ndr. ladrão) que mo canou.

Devo explicar que a minha única fonte imediata de economia poderia ter sido a bolsa da minha mãe. Mas tive que resistir, sem nunca a ter assaltado. A solução achada terá sido proceder a desvios de aplicação aos dinheiros que a minha mãe me dava para comprar merenda, na escola. Desse jeito consegui juntar tostões, centavo a centavo, até que o Jeep me sorriu.

Quando comprei o Jeep todo o mundo achou-me esquisito por causa da cor que ostentava. Alguns até chegaram a tomar que eu me inspirara nas cores das roupas do pai de Kwawenda. Daí mandei-o pintar de verde na oficina do primo Filipe. De facto, a cor que por ora ostentava me pareceu mais adequada, porque se confundia com os Jeeps da tropa colonial. Eram tantos os Jeeps da tropa colonial que se cruzavam pela Rua Condestável, pois lá pelo Matacuane Macamero havia o quartel. Assim me pareceu uma alternativa subtil para a ansiada discrição. Os mais velhos diziam que a cor era politicamente incorrecta porque eram os tais Willis que faziam a caça acelerada aos turras. Mas eu mal sabia o que eram os turras e muito menos a coisa de colónia.

Estava preocupado com a mudança rápida da cor do veículo porque me fartara de andar em boleias. E o Jeep caiu-me como uma prenda de Natal. O carro tinha um guiador que transpunha a bagageira. Locomovia-se por tracção humana. Não obstante, me via todo realizado por ter alcançado o sonho. Após adquiri-lo a minha felicidade foi tanta que tive que deixar de apertar o cinto nos intervalos de lanche.

O meu Jeep estava em condições mecânicas de tal maneira que nunca chegara a me envergonhar com avarias a meio do caminho. Salvo algumas excepções eu parava-o para remetê-lo na revisão, donde a cada vez saía novinho em folha, a brilhar. Desta forma, muitos desataram a cobiçá-lo.

Já muita gente quis vir no meu carro. As miúdas do bairro idem. Pena não as pudesse levar todas, porque não havia espaço que as pudesse comportar. Para resolver o dilema em que me encontrava reservei a todos passageiros o meu guarda-cinto, por onde eles deviam seguir-me pendurados, mesmo empoleirados, até chegarem ao destino, pois dentro do Jeep, mesmo que fosse com mil diabos, é que não os deixava entrar nunca.

Fosse como fosse, terá sido aquele Jeep que me transportara em visitas às casas das tias Clara e Rosa, a ter com os meus primos Rui, Beto, Filipe, Júlia, Nina, Terezinha e Cipriano, Angito, Tina, Felícia, Udi e Meta, lá para a Rua 7. Terá sido aquele Jeep todo-terreno que também me levara a sagrar vencedor em provas de ralis, desforrando e deixando para trás o Mercedes-Benz do Pintinho, o Scania do Fifi, o Mazda do Gabriel, o Toyota do Remane, todos ainda a cheirar a perfume dos stands. Tornei-me vaidoso devido as potencialidades do meu carro. Tornei-me vaidoso de tal maneira que passei a desrespeitar a outras marcas automobilísticas.

Creio que os patrões das fábricas dos outros carros rivais não gostaram das minhas vendas. Nada podiam fazer contra mim. Mas os outros amigos um dia acabariam aliando-se e mandaram os ladrões que fossem roubar o meu Jeep que estava parqueado na Cooperativa de Consumo 24 de Junho, local para onde a minha mãe me mandara comprar arroz, açúcar e mais qualquer coisa de que já não me recordo o que terá sido.

Até hoje não consigo compor-me da raiva do ladrão que me extraviou o Jeep Willys. Daí me custe decidir se compro ou não novo carro, pois ainda me demoro a compô-lo com bugigangas e luzinhas longo alcance e mata-boi (ndr. protecção à frente), como o outro, e vêem os ladrões mo tirar como o fizeram, sem dó nem piedade. Adelino Timóteo – Moçambique
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AdelinoTimóteo é escritor, jornalista e pintor. Poesia: “Antologia da Poesia Moçambicana “Nunca mais é Sábado“, “Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique“ (Prémio Nacional ANEM),“A Fronteira do Sublime”. Poemas deste livro reunidos em “De Veneza ao Peito”, e traduzidos para italiano, Antologia "Poesia Sempre", Biblioteca Nacional (Brasil). “Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida” (Prémio BCI 2011). Narrativa: Mulungu, A Virgem da Babilónia, Nação Pária, Não Chora, Carmen. 

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