Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 6 de março de 2013

Romancista


“O papel do romancista na evolução da literatura nos PALOP”


“Quase me pergunto se ainda há pachorra para ouvirem esse tal que vem já com o fim da colheita a ver-se, com a lavagem dos cestos praticamente iniciada. Para agravar o meu destino. Venho falar depois de o terem feito com a notabilidade que lhes é própria, dois ilustres moçambicanos chamados de propósito para darem ampla luminosidade à festa da nossa mais resistente associação amiga da cultura. É um arrojo meu tentar acrescentar seja lá o que for ao que já disseram sobre José Luís Cabaço e João Paulo Borges Coelho.

De qualquer maneira “Kanimambo” aos dois, por se entregarem antes de mim ao “fogo amigo”, esperando vir a beneficiar do seu trabalho como desbravadores.

Pois cá vamos para as nossas ideias sobre o papel do romancista na evolução da literatura nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa.

Constato pelas contas das leituras esparsas e das notícias episódicas dos jornalistas que a produção literária no universo dos PALOP anda de boa saúde, quer o que se avalie seja a poesia ou o romance, sem menosprezo para outros géneros como o Conto, a Novela ou a escrita dos dramaturgos.

A começar, já é muito bom que seja essa a realidade dos factos, perante o impetuoso avanço do desinteresse pela leitura, um fenómeno pelos vistos transversal e que vai obrigar os nossos Estados, os nossos sectores da Cultura, os nossos investigadores, a desafios imaginativos para que as sociedades do futuro não venham a ser uma infeliz e deslustrada reprodução dos longevos habitantes das cavernas, recolectores de frutos, caçadores de mamutes, fornicadores inveterados e pouco mais! Como dizem que a moda e a História andam aos ciclos com vaivéns infalíveis, tenho medo que venhamos a ser substituídos – se calhar mais cedo do que se pensa – por gerações grotescas de trogloditas e mentecaptos olimpicamente alheados da festa da leitura.

Retomando o fio, temos pois como primeira ideia a existência de uma literatura pujante, sólida, com sinais de uma produtividade a toda a prova, no conjunto das nossas cinco nações que se comunicam em português no continente africano.

O bom momento da nossa literatura é resultado da contribuição efectiva dada por todos os que um dia nas suas vidas descobriram o secreto e irrecusável apelo que vem de dentro, para que mais do que os mundanos affairs comuns e correntes do quotidiano, a passagem pela terra faz mais sentido quando se pratica o dom da partilha.

Escrever, na verdade, não é outra coisa senão entregar-se aos outros depois do egoísmo momentâneo e perdoável da produção.

Sinto que há cada vez mais gente a interessar-se pela escrita. Ou seja, temos romancistas a reproduzirem-se quase como cogumelos em tempo de chuvas.

Relativamente ao modo copioso como o romance vem reforçando o património intelectual dos nossos países, talvez valha a pena trazer à tona um punhado de perguntas que às tantas nos fazemos mas sem grandes preocupações com o que pode ser o leque de respostas correspondentes. Por exemplo, os romancistas estão mais motivados a escrever quando as sociedades em que vivem enfrentam tempos críticos como a guerra que por longo tempo nos acompanhou em Angola ou, pelo contrário, os tempos de acalmia, de paz, de sossego, sugerem mais temas, mais ideias, mais trabalho?

A observação que mantenho da nossa realidade não privilegia nem um nem outro cenário. A ideia na qual acredito é a de que, basicamente, os romancistas estão activos a tempo inteiro e vão buscar ao estado da sociedade – qualquer que ele seja – os temas inspiradores que depois trabalham segundo balizas ideológicas subjectivas e os seus próprios ritmos produtivos.

A contribuição dos romancistas dos nossos países para o crescimento das respectivas literaturas é, claramente, muito presente.

As sociedades africanas, ou seja, as nossas, têm a grande vantagem de não serem sociedades exauridas, exangues, recauchutadas nos modelos. Encerram um potencial de matéria virgem que é, na verdade, uma enormíssima dor de cabeça para os escritores, pois morrem de raiva pelo facto de os dias terem apenas 24 horas quando eles gostariam de dispor de mais tempo para trabalhar em tanta coisa que sabem estar à mão de semear.

Escrever em África, como africanos e sobre questões africanas, é uma infinita bênção.

Qualquer um de nós que sucumbiu à tentação de seguir as peugadas do romance – quer o histórico quer o ficcionado a partir da realidade circundante – sente que ao escrever ajuda a mostrar o que somos, como vivemos, o que sentimos, ao que aspiramos e o que nos atormenta.

Nos nossos países os romancistas agimos como se, sobre os nossos ombros, repousasse o peso da estruturação da História e do adensar de outras disciplinas surgidas da necessidade natural de se perceber e debater a teia complexa das inter-relações humanas.

Quando lemos Pepetela nas suas múltiplas entregas ficámos logo com um claro entendimento daquilo que estou a tentar teorizar aqui. O mesmo se dirá da linha de intervenção de Ismael Mateus, Manuel Rui Monteiro ou Aníbal Simões, valendo a extrapolação para Luís Bernardo Honwana, o moçambicano de quem a criançada em Angola leu “Nós Matámos o Cão Tinhoso” nos tempos de ingénua e saudosa lucidez em que se acreditava que os nossos podiam merecer, afinal, um espaço e um lugar no contexto do ensino que nos fazia (e faz) falta; ou o incontornável Mia Couto, que carrega às costas, pode dizer-se, a palpitante história presente e sem esperar pelo amanhã esquivo, da vida dos moçambicanos; referência também, e pelas mesmas razões, ao cabo-verdiano Manuel Lopes, que nos legou os Flagelados do Vento Leste, escrito era ainda o arquipélago uma colónia de Portugal mas insubstituível na descoberta do Cabo Verde real, com as suas calamidades, as secas, a vida em condições extremas num lugar agreste.

Admitamos que não é uma mera retórica a contribuição do romancista na consolidação, fortalecimento e projecção da literatura nos PALOP. Nem é, muito menos ainda, uma simples pergunta que se formula para preencher mais um painel que debate e dá trabalho a dois, três ou quatro teóricos que se esfalfam em explicações: nada disso!

O romance, felizmente, está presente na realidade dos nossos países com a panóplia de outras conquistas e degenerações próprias de um percurso de vida imparável. O que há é, de resto, uma indestrutível relação de causa e efeito: as sociedades produzem as sementes, o adubo, as mudas; os romancistas tratam de capturar essa atmosfera com o receio ancestral de se perder na voragem dos dias, e fazem os livros.

Portanto, a hipótese improvável de que os romancistas deixem de cumprir com o seu papel de alimentadores da literatura nos nossos países só se daria se, por um qualquer eclipse existencial, as nossas sociedades se tornassem amorfas, deixassem de produzir eventos nos mais distintos campos da vida, numa palavra, se extinguissem como factores de transformação.

Havendo países, havendo vida, havendo acção humana, os romancistas lá estarão eles sempre de ouvido arrebitado para servir a sua geração e as que virão, interpretando os fenómenos e fixando-os no papel dos livros.

Não tenhamos pois o receio de que o que está a acontecer hoje diante dos nossos narizes (com a nossa contribuição consciente enquanto cidadãos ou na condição de impotentes observadores apenas) se perca no lusco-fusco do tempo. A classe dos escritores, ao longo da civilização humana, nunca se caracterizou pela distracção nem pela preguicite. De tal sorte que, no caso dos nossos países, temos e continuaremos a ter preservado em livros o amplo e incrível caleidoscópio de fenómenos próprios da nossa evolução como comunidades. Os livros que lemos e leremos no futuro vão continuar a falar das dores da colonização como aqui mesmo neste evento da Chá de Caxinde tivemos testemunho, com a obra de Alberto de Oliveira Pinto “Angola e as Retóricas Coloniais”; do parto difícil que foram as nossas independências; da utopia dos primeiros anos, o sonho do céu e o paraíso depois de vencido o colonizador estrangeiro; da trapalhada risível que é a tentativa de nos tornarmos empresários ganhadores e novos-ricos nos países que agora são efectivamente nossos pela legitimidade das independências; de tudo o que lhe está subjacente, as “catanadas” entre “iguais”; as ostentações bizarras; o fausto patético das festas em sociedade, onde desfilam com ar triunfal caricaturas humanas de que os lúcidos se riem; o cancro da corrupção; dos que vão ficando pelo caminho, frustrados porque lutaram pela pátria mas a riqueza não os contemplou; das mulheres e homens astutos que alimentam os mais estranhos submundos, que tão bem os retracta o nosso Pepetela; dos mercadores que chegam de todo o mundo para iniciar entre nós os seus mundos, com fahitas que seduzem até meninos alimentados desde sempre com produtos da Nestlé; das novas fés e novas rezas que fecham ruas em bairros onde os nativos passaram quase à clandestinidade; dos doutorismos em voga, porque os diplomas pendurados na parede são uma mescla irresistível de fetiche e status; da enganosa felicidade dos jovens por cada vez lerem menos e renderem-se aos subprodutos de uma cultura que não é nenhuma; enfim, um universo vasto de retractos que só poderá produzir como resultado uma literatura evoluída porque densa, diversificada nos temas que aborda, extraordinariamente rica até pelos acasos do Destino! 


Saio de cena com um desejo impossível de reprimir, que é o de voltar a exaltar a capacidade de sofrimento da Chá de Caxinde, que todos percebemos que há anos faz do deserto o seu lugar de pregação, mas não atira a toalha ao chão, não desiste, não desfalece, não se rende à tentativa silenciosa de se secundarizar a alma cultural de uma cidade como Luanda, que já foi lugar de fervorosas tertúlias e emotivas loas ao conhecimento e saber. Mantenham-se à tona, pois não há tsunamis que vos varrerão do mapa, enquanto acreditarmos todos que ler é uma festa.” Luís Fernando – Angola in “Jornal Cultura”

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