Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Portugal - Os gatos não têm vertigens: os homens vencem-nas

O que mais me prendeu no filme – e quero aqui salientar – é a expressão explícita e dolorosamente real da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice

1. O último filme de António Pedro Vasconcelos parece não ter agradado a alguns críticos. Percebe-se.

O filme - reconheça-se - fala de assuntos e sentimentos intelectualmente pouco elaborados. Exibe a banal, mas revoltante, miséria de uma sociedade marginal - na verdade, discriminada - e da juventude urbana que ela gerou: uma juventude sem passado, sem presente e, provavelmente, sem futuro.

Mostra, por outro lado, a atitude confiante de uma mulher mais velha, ainda militante de ideias antigas, mas hoje acintosamente incómodas: uma mulher de uma geração capaz de actos de uma generosidade transformadora e não apenas conformada e conivente com a injustiça reinante.

Transmite-nos, de choque, uma certa linguagem juvenil, que rebenta directa na nossa cara - e não só por causa do magnífico som do filme - mas que só espanta quem, porventura, não usa transportes públicos.

Conta-nos, na verdade, uma estória com princípio, meio e fim que, em vez de nos deixar desesperados e sem rumo, contém em si mesma o fermento da esperança na humanidade.

É, portanto, um grande filme!

2. Não é, todavia, minha intenção converter-me, agora, em crítico de cinema. Gosto muito de cinema, mas, em rigor, nada sei sobre a sua arte.

O que mais me prendeu no filme - e quero aqui salientar - é a expressão explícita e dolorosamente real da crueldade que a sociedade actual dirige à velhice.

Não falo já da situação económica da velhice mais desprotegida, que nele apenas aparece retratada em personagens laterais. Falo da velhice enquanto circunstância de vida de muita gente de todas as condições sociais.

O que o filme denuncia é a atomização e a desumanidade da vida das pessoas engendrada por uma sociedade frenética, desequilibrada, doente e doentia, e muitas vezes amoral, que dificulta a comunicação dos mais velhos com os mais novos, dos filhos com os pais, enfim, das pessoas, umas com as outras.


A "coisificação" das pessoas, a tentativa de as tornar descartáveis - desprovidas de alma e sentimentos - não é, sabemos, um fenómeno inteiramente recente ou original.

Em todo o caso, apesar de todas as vicissitudes, a humanidade tinha vindo, nos últimos séculos, a conseguir amaciar um pouco as esquinas mais afiadas da sua maneira de viver junta, da sua convivialidade.

Ora, o que hoje nos querem fazer crer é, precisamente, que esse caminho de humanização das relações sociais deve ser interrompido - e pode mesmo ter de regredir - em nome de um almejado, mas sempre distante, progresso económico.

Só que, por fim, ninguém tem a amabilidade de nos dizer quem beneficiará com ele: serão os velhos, os novos, a maioria, ou apenas uma cada vez mais pequena minoria?

O que constatamos é que o tal progresso económico não tende já a tornar menos agreste a vida dos muitos - designadamente a dos mais velhos - e aí reside o paradoxo atroz desse discurso.

E, todavia, têm sido esses velhos que, com as suas pequenas reformas, com o pouco que lhes resta da sua estabilidade material e emocional, têm conseguido acudir aos sobressaltos diários dos mais novos, garantindo uma réstia de humanidade à vida social.

Só que esses velhos têm alma, têm vida, têm aspirações e esperanças próprias e não podem ser tratados apenas como caixa de previdência dos mais novos, e só enquanto como tal puderem funcionar.

A humanização da vida pode, se todos quisermos, continuar a ser um sonho e também uma realidade que construímos diariamente.

Não lhe criem falsos obstáculos.

Os gatos podem não ter vertigens: os homens sim, mas com coragem, podem vencê-las. António Cluny – Portugal in "Jornal I"

António Cluny – Jurista e presidente da MEDEL

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