Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Moçambique – Filósofo Severino Ngoenha entrevistado no Brasil

“Os muros do mundo são feitos para os pobres. Quem tem meios não tem muros”

A esperança em um mundo renovado e mais igual após a queda do Muro de Berlim se transformou em desilusão, diz intelectual moçambicano


Entre a África e a Europa, o filósofo Severino Elias Ngoenha tem história para contar: nasceu em Maputo, a capital de Moçambique, em 1962, quando o país estava perto de explodir em guerra pela libertação. Sua formação intelectual se deu, entretanto, em Roma, para onde foi como seminarista. Curiosamente, foi lá que pôde conhecer seu próprio con­tinente. “Quando cheguei a Ro­ma, entrei num colégio feito especialmente para quem viesse da África. Ti­nha um mexicano, um sírio e al­guns vietnamitas que acabavam de che­gar. O restante eram africanos. Então, comecei a conhecer um ruandês, um burundês, um nigeriano, um queniano, um congolês, um malgaxe.”

Depois de concluir seu doutorado em Filosofia, voltou ao país de origem e ajudou a formatar o então embrionário sistema educacional moçambicano. Professor associado do departamento de Antropologia e Sociologia da Universidade de Lausanne, Suíça, ele integrou-se ao Departamento de Filosofia da Universidade Pedagógica de Moçam­bique, em 2010. Suas pesquisas situam-se na área de antropologia, pensamento africano, filosofia da educação e interculturalidade.

Em entrevista ao Jornal Opção durante passagem por Goiânia — ele falou a alunos da Universidade Federal de Goiás (UFG) durante o 4º Simpósio Internacional de Ciên­cias Sociais e 3ª Jornada de Muse­ologia —, Severino Ngoenha mostrou-se especialmente preocupado com a questão dos refugiados e dos muros que se erguem para os menos favorecidos economicamente. Não necessariamente muros físicos. “Para quem tem um cartão de crédito ilimitado não há muros. Esses muros são feitos para os pobres e esses pobres não se encontram apenas no hemisfério sul, mas também no hemisfério norte. Sofrem com muros, independentemente de onde sejam.”

O sr. é uma referência da educação em Moçambique e veio ao Brasil para trocar experiências e fazer parcerias. Como é a trajetória de sua história de vida?

Talvez uma das coisas mais difíceis para um homem seja falar de si mesmo. Você pode oscilar de muita humildade, o que muitos podem julgar algo falso. Mas um tom muito pomposo também não cai bem (risos). Eu nasci em Maputo, ainda no tempo colonial, mas minha adolescência ocorreu essencialmente no período de transição do colonialismo para a independência, quando abrimos os olhos para uma nova realidade, para sermos construtores de nosso próprio futuro, sem depender necessariamente de alguém, seja dos portugueses do tempo colonial ou da África do Sul, potência vizinha. Tampouco que fosse o Ocidente, também. Crescemos, então, nessa dinâmica de orgulho na autoconstrução, pensando que, com o estudo em primeiro lugar e com o trabalho, em seguida, poderíamos ser senhores de nossas vidas, um futuro diferente da história como então era conhecida por nós, com escravatura, colonialismo, opressão e outras coisas.

A religião teve um papel importante em sua vida e em seu engajamento. Como foi essa experiência?

Fui sempre cristão e, na década de 70, resolvi ir para o seminário. Decidi que era o melhor lugar em que podia estar a serviço de uma causa. A Teologia da Libertação fazia uma ponte entre o que era, de um lado, as vontades libertárias próprias de nosso povo — e do regime que estávamos trilhando — e, de outro, a dimensão teológica de Igreja a que eu pertencia e a que eu fazia questão de pertencer.

Então, fui para Roma. Lá, fiz licenciatura em Teologia e mestrado em Filosofia. Segui para a Alemanha, onde fiz meu doutoramento e outros estudos. Fui para a Suíça, onde fui professor associado em Lausanne. A vida fez com que eu começasse a colaborar, nessa altura, com Moçambique. Fiz programas para reintrodução de Filo­sofia no país; então, fizemos a formação dos professores em licenciaturas, posteriormente, construímos os mestrados e hoje estamos na formação doutoral. Tenho hoje alunos que são meus colegas e passaram a ter atividades e responsabilidades no país e mesmo fora de lá. Também colaborei com a Univer­sidade Eduardo Mondlane [instituição de ensino superior pública moçambicana] na formação de Ciências Sociais e Ciência Política. Hoje também tenho antigos alunos que são doutores, formados em países como Brasil, França, Grã-Bretanha, entre outros, e que hoje são personalidades importantes para nossa sociedade. Isso mostra também o quanto sou velho, não? (risos)

Ou pode mostrar também como sua trajetória foi produtiva, não?

(risos) Pode ser. Hoje, continuo a colaborar com a Eduardo Mon­dlane na formação em Filosofia e sou responsável pela escola de doutorado em Filosofia. Também fiquei como reitor da Univer­sidade Téc­nica de Moçambique (UDM), pela qual tento uma cooperação com a Universidade Federal de Goiás, para estabelecer parcerias e colaborações.

O sr. é um dos responsáveis, então, pelo que ocorreu na educação de Moçambique desde sua independência. Pergunto: o sr. se sente mesmo um protagonista da história de seu país?

Existe quem decide politicamente o que deve acontecer nos âmbitos diversos da vida social e política de um país, e existem os executores de programas. Digamos que eu fui um bom executor de programas. Não fui eu quem decidiu que a filosofia deveria ser introduzia na educação de Moçambique; nem fui eu quem decidiu que os liceus do país teriam a disciplina; muito menos determinei que houvesse mestrados e doutoramento. Pode dizer que eu fui um bom operário que materializou uma série de coisas, mas essas foram decididas em instâncias das quais eu não era responsável.

Mas o sr. avalizaria, então, os ru­mos da educação em Moçambique?

Os processos de educação em nossos países têm trilhado caminhos de metamorfose muito complicados. Digo isso sobre Moçambique, mas vale também para outros países da África. Costumo dizer que o continente africano — de maneira geral, independentemente do tipo de regime que se pratica —, desde a segunda metade do século 20, fez da educação o caminho necessário para sair da pobreza e do desenvolvimento. Se compararmos os números do tempo colonial aos de agora, vemos que houve uma massificação importante da educação em Moçambique.

Ao mesmo tempo, isso acarretou problemas de dois tipos. O primeiro é que a massificação pode ter significado, em alguns casos, a redução da qualidade. Isso porque um grande número de professores que havia no tempo colonial saiu quando houve a independência. Tive­mos de remar com o pouco de professores que tínhamos ou tivemos de improvisar para responder à massificação.

Houve um grande êxodo de professores por ocasião da independência de Moçambique?

Sim, e isso foi um grande problema, que nos acompanha, em parte, até os dias de hoje, porque não conseguimos igualar, em termos de qualidade. Um segundo problema por que passamos foi ter apostado na massificação da educação com o olhar na miragem do que esta era no tempo colonial. Nós nunca nos perguntamos o tipo de educação que fosse o mais adequado para tirar nosso país, ou nosso continente, das condições de pobreza e de subdesenvolvimento com que temos confrontado. Mais do que avalizar o que aconteceu, a aposta desta geração a que em parte pertenço e está aí, mas que já vem ficando para trás, tem de ser se questionar quanto ao tipo de educação que pode corresponder à busca essencial. Ou seja, não é uma situação só política, mas de construção de políticas democráticas essenciais e, por outro, de desenvolvimento social vinculado a outro país.

No Brasil, especialmente com o fim do regime militar, e especialmente a partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, existe a preocupação em diminuir o índice de analfabetismo, a partir de programas de incentivo, como o Bolsa Escola, que depois se tornou o Bolsa Família. Como o sr. vê esse tipo de política educacional básica que temos por aqui? Tem como comparar ao que ocorre em Moçambique?

Toda comparação que eu fizesse seria temerária. Não tenho co­nhecimento suficiente para estabelecer uma leitura comparativa entre o que corre aqui e em Moçam­bique. Talvez salvem duas coisas para dizer: me parece que a política brasileira, pelo pouco que conheço, discriminou durante muito tempo as minores — as populações de origem negra, indígena, os chamados pardos, as mulheres, nem sei se posso chamar de “minorias”, exatamente — tudo o que ocorreu até antes da Segunda Guerra Mundial. Constituiu-se uma sociedade em que vemos grandes riquezas, mas também grandes pobrezas; vemos grandes intelectualidades, mas também um imenso segmento de gente com pouco conhecimento.

Moçambique, desde 1975, é um país mais ou menos uniforme. Não temos muitos ricos — aliás, temos pobreza quase total — nem polos de concentração de conhecimento e de inteligência, como vocês têm no Rio de Janeiro e em São Paulo, com tantas universidades e faculdades, inclusive da iniciativa privada. Em meu país, temos um nível de escolaridade que é baixo. Então, a partir daí, vejo que há diferenças radicais que fazem com que não haja base para comparação.


O segundo ponto é que, no Bra­sil, o sistema escolar foi criado por portugueses, como mo­delo, mas as universidades receberam a influência da França, em Sorbonne, e eram alimentadas pelo saber mais ocidental. Quan­do a Capes [Co­ordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior] começou a mandar brasileiros para estudar fora, o essencial era ir para os Estados Unidos ou para a Europa, que eram a referência. Para fazer isso, era preciso ter meios. A po­tên­cia econômica que o Brasil foi se tornando permitiu que esses pro­gramas se realizassem. Isso contribuiu, de certa maneira, para melhorar o nível de formação dos quadros superiores que, quando voltaram, formaram outros quadros.

Em Moçambique, não temos os meios do Brasil, não temos a extensão territorial nem a mesma capacidade econômica, mas também não temos as mesmas referências. Para nós, os franceses nunca tiveram qualquer importância em relação à educação, apesar de os programas portugueses imitarem, no fundo, aquilo que era o modelo francês. Estamos encurralados na África costal, onde essencialmente se fala inglês. Bem ou mal, o modelo anglo-saxônico acaba por vincar todos. Não tivemos também o processo de discriminação que justificasse as cotas raciais e sociais que vocês têm aqui. Nosso discurso era outro, era o de que nós nascemos e crescemos em uma região em que o racismo predominava. Nosso discurso era de construir uma sociedade sem raças, na qual raças e etnias das tribos não tivessem qualquer valor. O movimento negro no Brasil é formado por pessoas que querem ações afirmativas, para serem discriminadas positivamente. As dinâmicas sociais e políticas são completamente diferentes nos dois países. As comparações, me parece, podem criar equívocos.

Apesar da grande pobreza em Moçambique, não existe lá uma desigualdade social tamanha como a que acomete o Brasil…

No que eu chamo comumente de Primeira República em Mo­çam­bique, onde nos pautávamos por uma filosofia política igualitarista, pro­veniente de certa leitura do marxismo, de fato as diferenças sociais não existiam. Mas, a partir do momento em que houve os acordos de paz — o que corresponde, de fato, à vitória do neoliberalismo sobre os sistemas igualitaristas inspirados na então União Sovié­tica —, começamos a ver rapidamente discrepâncias sociais. Uma certa comunidade internacional co­meçou a cooptar uma parte das elites políticas moçambicanas e as trans­formou em uma elite econômica.

Neste momento histórico, estamos com uma discrepância em nível de poder de compra que, obviamente, não são comparáveis às que o Brasil tem. Não tem a mesma história nem a mesma segmentação, mas estamos assistindo a uma espécie de ruptura e de nascimento de uma classe social pequenina, mas extremamente poderosa em termos de consumo, em detrimento de uma massa que continua com graves dificuldades. Isso corresponde ao tempo, às políticas e às economias dominantes. Elas têm necessidade do que se chama de classe média, mas eu diria que o neoliberalismo precisa de seus representantes “in loco”. Aquilo que no século 19 faziam o antropólogo, o explorador e o missionário agora vai ser feito por alguém que hoje representa os interesses dessas multinacionais e desse neoliberalismo. É o que nós chamados de “nova burguesia emergente”, mas é o mesmo processo que ocorreu na América Latina no século 19 e estamos agora repetindo na África do século 21.

O primeiro presidente de Moçambique foi um antropólogo. Desde o começo da luta até a independência, o socialismo chegou ao po­der por uma via sangrenta, ao contrário do Brasil, em que o PT chegou pela via democrática. Seu país poderia estar melhor do que está hoje?

A leitura que podemos fazer é que o colonialismo acabou de fato com o fim da Segunda Guerra Mundial, quando duas grandes potências dominaram o mundo: de um lado a União Soviética, pela esquerda, e do outro, os Estados Unidos, pela direita. Isso vai redimensionar o espaço da França e da Grã-Bretanha com as colônias, que tinham feito a parte do “leão” na distribuição do continente africano. Em 1941, Winston Churchill [primeiro-ministro britânico] pede a ajuda dos Estados Unidos para entrar em guerra, e a resposta de Franklin Roosevelt [presidente dos Estados Unidos] foi de que, ao fim do processo de guerra, as colônias teriam de acabar. Quer dizer, os Estados Unidos, como a União Soviética e os países do norte da Europa, queriam ter acesso direto aos países africanos. Isso determinou que, gradualmente, o processo de independências africanas fosse defendido quer pelo Ocidente, nos Estados Unidos, quer pelo Leste, na União Soviética. Entretanto, as políticas francesas, sobretudo, mas também as inglesas, eram de resistência ao fim do colonialismo. Charles de Gaulle [presidente da França] transforma suas colônias em países ultramarinos que fazem parte da França, como as ilhas de Martinica, Guadalupe e Reunião hoje. A ideia era continuar com o grande império francês, mudando o nominativo “colonialismo” em território de ultramar.

Mas Portugal também parece ir por esse caminho…

Portugal segue o modelo francês, passa a nos considerar territórios de ultramar, pensando que isso iria diminuir os movimentos libertários e a vontade de independência. No caso francês, a Guerra da Argélia e, sobretudo, a recusa de Sékou Touré [primeiro presidente da Guiné após a independência, em 1958] na Guiné serão as alavancas para continuar aquele sonho de De Gaulle de manter sua hegemonia nos países. Não obstante isso, ele conseguiu impor por meio de uma limitação da Constituição, da presença de militares, uma espécie de neocolonialismo francês, que continua infelizmente ainda hoje em boa parte do continente, sobretudo nos países de língua oficial francesa. A Inglaterra fez a mesma coisa com seus países, com um tipo de prática diferenciada.

Ora, França e Inglaterra tinham meios políticos e econômicos para manter seu neocolonialismo, o que Portugal não tinha. Por isso, Portugal não se pôde permitir a dar uma independência a Angola, a Moçam­bique e a Guiné Bissau, bem como a Cabo Verde e a São Tomé e Príncipe, pensando que pudesse fazer uma prática neocolonial. Isso é a primeira questão. Em segundo lugar, Portugal era regido por um governo fascista, o de Salazar. Um terceiro aspecto: a geopolítica faz com que Moçambique, ainda mais que Angola, fosse cercado pelo “apartheid” da África do Sul.

Então, fizeram com que o rompimento do colonialismo passasse por esses processos de luta armada que foram destrutivos. Os cinco países de língua oficial portuguesa tiveram de passar por lutas de libertação armada, que duraram dez anos ou mais. Até nossos irmãos de países vizinhos, da África francófona e anglófila, não tiveram de passar por esse processo.

Lutas armadas são destrutivas, são desestruturantes e têm implicações políticas. As metamorfoses da luta e a adesão de Portugal à Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte], entre outras coisas, fizeram com que Moçambique caísse, em minha opinião, numa ideologia de esquerda que nunca foi uma opção principal. A única e verdadeira opção foi a independência política, mas, para se ter meios para alcançar a independência, a África e o Terceiro Mun­do teriam de ter um não alinhamento. Entretanto, o não alinhamento não funcionou e a­cabamos por ter de nos alinhar. E o fato de nos alinharmos e ter­mos obtido a independência ali­nhados à esquerda, deu argumentos à Rodésia [hoje Zim­bábue] e à África do Sul para iniciar os ataques e, assim, prorrogou-se o processo de luta.

Então, é muito difícil responder à pergunta se poderia ter sido diferente. Não consigo ver, no quadro geopolítico in­ternacional, como podíamos ter mantido a vontade de independência em termos diferentes. Penso que, por essencial, aquilo que aconteceu dependeu mais do quadro externo do que de uma conjuntura interna. Penso assim. Peque­nos atos são episódios no interior de um grande filme, mas no essencial a espinha dorsal do problema é o que acabei de dizer. E aí há dificuldade de ver como isso poderia ter-se passado diferentemente.

“A imigração foi e é um processo violento”

A luta pela independência, quando chega à guerra civil, deixa danos sérios na população, como os refugiados, a questão da fome e outros. Como é estar num país assim?

De fato, a guerra nunca parou em Moçambique. A guerra começa em 1964 e termina em 1974, mas logo em seguida vêm os ataques da Rodésia.

O sr. viveu isso tudo?

Eu estava em Maputo, na capital, e a guerra se passava no centro-norte. Eu era jovem quando a independência chegou, quando então eu tinha de 12 para 13 anos. Então, não posso dizer que tivesse consciência dos fatos. Tive mais conhecimento e consciência do período de guerra que começa no conflito com a Rodésia e, depois, com a intervenção sul-africana. Eu fui estudar no exterior na década de 80, mas a guerra em Moçambique era uma realidade, em um processo muito cruel. Dessa segunda parte da guerra, eu tive plena consciência.

O sr. foi diretamente para a Itália para fazer a graduação?

Sim.

Foi movido principalmente pela questão religiosa?

Eu era seminarista, tinha estudado filosofia em Maputo e, então, fui encontrar minha filosofia por meio da teologia. Estava num quadro praticamente religioso, sem nunca abandonar minhas preocupações fundamentais em termos de emancipação, de onde veio esse interesse pela Teologia da Libertação, que já mencionei antes.

E como foi sua adaptação na Itália, em um mundo totalmente ocidentalizado?

No colégio onde eu estava, o que descobri, em primeiro lugar, e que me interessava muito, foi a África, por paradoxal que fosse. Nasci em Maputo, a capital de Moçambique. Primeiro, eu tive consciência de ser moçambicano e sempre preferi essa “moçambicanidade”, apesar de ser uma identidade em construção. Quando cheguei a Roma, entrei num colégio que tinha mais de cem estudantes, e 99% deles eram africanos. Era um colégio feito especialmente para quem viesse dos países da África. Tinha um mexicano, um sírio e alguns vietnamitas que acabavam de chegar. O restante era de africanos. Então, comecei a conhecer um ruandês, um burundês, um nigeriano, um queniano, um congolês, um malgaxe. No fundo, Roma permitiu-me descobrir a África. A África, que era só uma palavra, eu comecei a tocá-la com os dedos, nas línguas, nos sabores das comidas que se cozinhava, nas linguagens, nos problemas, nos conflitos, nas realidades sociais etc. Eu descobri a África na Europa; mas nem era Europa: era Roma, o centro da catolicidade mundial. Me permitiu isso.

A própria palavra, “católico”, significa “algo de caráter universal”…

Exatamente. Ao mesmo tempo, também descobri uma parte da Europa: os costumes, a maneira de ser, de viver, as diferenças sociais, de línguas e de linguagens, até o fato de sair de uma pobreza de Moçambique para uma Roma de certa opulência. Ir de um Moçambique em guerra para uma Roma que respirava paz — apesar de ter ainda uma Brigadas Vermelhas [organização paramilitar de guerrilha comunista italiana] quando cheguei, mas já no fim —, era uma estrutura social completamente diferente. Mas a Roma que vivi — a Ro­ma cristã, eclesiástica, que era também uma Roma laica, onde jogamos futebol e íamos à cidade como toda a gente —, era muito mais tolerante que a Roma que encontro hoje. Quero dizer que o africano era mais um objeto de curiosidade no sentido positivo da palavra, mas não de discriminação. A Roma de hoje, me parece, quando vê um negro, um árabe, mais o discrimina do que o a­co­lhe como uma surpresa pela diferença que pode trazer no viver conjunto.

O sr. credita isso à questão econômica?

Eu credito aos processos de imigração. A imigração foi e é um processo violento. É violento para as pessoas, que precisam abandonar suas casas e enfrentar o mar. Parece que estamos condenados a sempre fazer frente ao mar: uma vez pela escravatura, uma vez pelo colonialismo e, agora, quase que de maneira involuntária, temos de atravessar o mar para lutar pela sobrevivência. É violento pelo número de mortes, pela destruição de famílias, pelo abandono das terras, pela discriminação; também é violento para as pessoas que, de um dia para o outro, precisam acolher pessoas que não conhecem sua língua e que quase têm essa sensação de invasão por pessoas que chegam e não sabem muito bem como integrá-las e conviver com elas.

Esse processo é violento também pela exploração que certos grupos fazem da imigração, colocando imigrantes para trabalhar 12, 13, 14 horas por dia, pagando pouco. Isso acaba criando guerra de pobres. Quero dizer que é um processo violento para uns e outros e que, no fim, acaba por incrementar a xenofobia e reforçar posições de extrema direita, como a da discriminação e a demonização do outro. Isso está fazendo avançar, também, a força de certos políticos radicais em alguns países.

Quando o sr. pensa nos problemas dos refugiados e da imigração, que talvez seja o drama mais sério do mundo hoje, consegue definir um ponto central? É a disputa religiosa, que envolve, por exemplo o radicalismo do Estado Islâmico? Ou seria uma questão econômica ou climática, que afeta bastante a África, principalmente? É possível dizer que existe algo mais grave nesse processo ou é um conjunto de fatores?

Acho difícil identificar um fator como sendo o determinante. Quan­do olho para o processo de imigração, como já aconteceu na Itália, em um primeiro momento me parece estar ligado ao imaginário. Quando os programas das televisões privadas italianas começaram a ser vistas na Albânia, aquilo que os albaneses viam era uma Itália que parecia opulenta, cheia de bens e de possibilidades, diante da terra deles, que era cheia de dificuldades. A primeira imigração que chegou da Albânia foi produzida pelos efeitos da televisão. Ora, as televisões não mostram a vida das pessoas, mas outras realidades, com casas grandes. É como ocorre com as telenovelas brasileiras.

Em Moçambique passam as novelas brasileiras?

Até demais (risos). Por isso, o moçambicano de senso comum tende a pensar que o Brasil é aquele da novela, assim como os albaneses pensaram que a Itália era aquela que viam na TV. E essa foi a produção que criou uma miragem e fez com que muitos albaneses fossem para a Itália. Mas também na África subsaariana essa questão da representação é importante. As pessoas que atravessam da África subsaariana para a Europa são pessoas que têm um conhecimento científico geográfico de onde ficam o Sul e o Norte, que são citadinas e que têm um mínimo de meios para pagar aqueles que os fazem atravessar.

Mas essas pessoas, que estão nas cidades e que podem acumular dinheiro, não são necessariamente as mais pobres e com mais problemas nos países de origem, mas elas imaginam que, chegando à Europa, suas condições de vida vão melhorar. Uma vez mais, é o imaginário, mais que a realidade social. Porque na Europa, muitas vezes, as condições por que elas vão passar são de maior pobreza do que as condições que tinham no país de origem. Então, as questões de imaginário e de representações determinam mais a imigração que de fato as diferenças sociais e econômicas.

Aqui entra a questão de desequilíbrio econômico; do discurso que se faz em volta dele. [Umberto] Bossi, que era da Liga Lombarda, um movimento de extrema direita, dizia: “Se não quer imigração, ajudem as pessoas onde elas estão”. Quer dizer que as políticas de desequilíbrio entre o hemisfério norte e o hemisfério sul não favoreceram absolutamente nada a fixação das pessoas do sul em seus lugares de origem. Depois, os outros fatores vão se acrescentar a isso. É preciso ver que o oportunismo econômico fez com que muitas pessoas fingissem que não queriam a imigração, mas que, no fundo, tirassem proveito dela. Depois da Segunda Guerra Mundial, De Gaulle dá ordens para que os imigrantes portugueses, espanhóis e italianos entrassem à noite e não de dia. Por quê? Se eles entrassem de dia, teriam de ser registrados e ter as mesmas condições sociais e trabalhistas; se entram à noite, eles seriam um tanto clandestinos, não se precisaria pagar a mesma coisa.

Então, essa imigração, se de um lado é devido ao que acontece no sul, há no norte um certo apelo por ela. Eu encontrei um homem no norte da Itália que dizia que empresas dele cresceram muito quando chegaram os imigrantes. Ele paga em dinheiro, faz trabalhar 12 horas e não 8 por dia. Qual­quer pessoa de Roma hoje tem uma empregada doméstica, o que não acontecia há 20 ou 30 anos; empregadas domésticas de Cabo Verde, das Fili­pi­­nas. Quer dizer, o Ocidente tirou proveito desse tipo de tráfico sem nunca dizer oficialmente que estava em seu raio de interesse que essa imigração acontecesse. O que a Alemanha fez agora com os da Síria foi uma imigração coletiva: “Nós queremos que venham o especialista em informática, o engenheiro, por ser útil para nossa indústria. Mas não queremos aquele que não tenha formação alguma”. Quer dizer, existe um maquiavelismo político que justificava isso.

Por agora, o último movimento dos sírios também obedeceu mais ou menos a mesma lógica, mas é preciso ver que a desestabilização do Oriente Médio é resultado das falhas das políticas do próprio Ocidente, do intervencionismo no Iraque, na Síria e na Líbia. As questões políticas e econômicas do mundo sempre passam pelas armas. Quer dizer, o gangsterismo do Estado, o “texanismo” das políticas ocidentais. Para o Ocidente e essas políticas, tudo se resolve com armas. Pode-se tomar um presidente de um país e matá-lo. Vivem, afinal de contas, de desestruturar. Jogam bombas por cima, mas não querem descer lá embaixo para ajudar a reconstruir o tecido social. E isso está na origem da criação de todos os movimentos de desestabilização que o Oriente Médio conhece. A imigração é um de seus corolários. Um alerta, porém, é que quem sofre, em primeiro lugar, não são os ocidentais: são os próprios sírios, são os libaneses, são os iraquianos.

Então, o que o mundo ocidental mostra em suas reportagens é o Ocidente desesperado, sem saber o que fazer. Mas quem está desesperado, de fato? São aqueles que abandonam suas casas em seus países de origem.

Esses são as primeiras e verdadeiras vítimas do processo de migração, não?

Quando eu era jovem, estava na Itália e caiu o Muro de Berlim. Eu fui o primeiro a ficar na fila de uma livraria para comprar a “Pe­restroika”, de Mikhail Gorbachev [então presidente da União Soviética]. Eu tinha muita esperança de que a Guerra Fria iria acabar e nós iríamos construir um mundo novo com a democracia, com valores diferentes. Eu sonhava que a produção de armas iria acabar, que a militarização do mundo iria acabar e que os campos minados iriam desaparecer. A pequenez das classes políticas que nós tivemos desde a queda do Muro de Berlim fez com que, ao invés de acabarmos com os conflitos, com o fim da Guerra Fria nós exacerbássemos esses conflitos. Tivemos presidentes e uma elite política de mente pequena, que não foram capazes de perceber isso como uma oportunidade de construir, de fato, um mundo diferente. Hoje estamos a reconstruir os muros. Construí­mos muros no Peru, para separar os ricos dos pobres, me parece que em Lima; construímos muros na Turquia e na Tunísia, para que os africanos da África subsaariana não fossem para lá. E começamos a construir muros na própria Europa, como vemos na Áustria e, agora, na Croácia.

Quer dizer, todas aquelas pe­dras que tiramos de Berlim, metemo-nas de lado, à espera de um bom momento para voltar a pô-las. E agora nem sequer aquelas pedras bastam: estamos a colocar novas pedras para criar novos muros. Hoje, não é o Muro de Berlim, mas o muro entre riqueza e pobreza, entre o sul e o norte. Essa é a realidade.


A maioria dos bolivianos e peruanos que vêm para o Brasil passa a trabalhar em subempregos nas grandes cidades, notadamente em São Paulo, onde há muitas confecções, inclusive de grifes famosas que já foram autuadas por promover trabalho praticamente escravo. Muitos desses migrantes acabam por desempenhar tarefas em cubículos, durante horas e horas, sem as mínimas condições de dignidade. Em Goiânia, temos um boom de condomínios horizontais, onde as pessoas que têm poder financeiro podem pagar para se cercar de segurança, bem como proteger seus bens. Esses muros modernos dividem quem pode pagar para estar dentro deles e quem acaba excluído, como ocorria, de certa forma, na idade média, com as fortalezas feudais. Isso que o sr. diz, então, é um fenômeno que o­cor­re interpaíses, mas também “intracidades”. É o fim da utopia? Para quem vem do seminário, da ex­­periência com a Teologia da Li­ber­tação, como é ver esse contraste do mundo pós-Muro de Berlim?

O tempo em que nós vivemos é um tempo não de riqueza de nações, como preconizava Adam Smith. Hoje isso perdeu muito de seu sentido, embora ainda haja nações de fato ricas, como Luxemburgo, Suíça, Suécia etc. Mas o que nós assistimos nos Estados Unidos, por exemplo, é a existência de grupos ricos e outros de muita pobreza; no Brasil, a mesma coisa. No sul do mundo, chegamos a países como a África do Sul, em que vemos pequenos grupos de ricos e muitos pobres. Em Moçambique, a mesma coisa. Então, os muros não separam só países. Há pessoas para as quais não há muros, não há fronteiras. Se você tem um cartão de crédito bem cheio, não tem muro que você não atravesse — este é o título de um poema de um escritor da Martinica que diz que “não há muros que não atravessemos”. Eu concordo, não há muros que a gente não atravesse assim. Se a pessoa tem um grande limite de crédito, hoje, independentemente, da cor de suas pernas, de seu país de origem, se você mostra que tem 1 milhão de dólares pode atravessar qualquer muro voando, pois o cartão de crédito abre qualquer porta, ultrapassa qualquer fronteira. Quero dizer que os novos muros são simbólicos. Os muros que nós pomos os aviões passam por cima deles. Nós mantemos os muros físicos, mas quem tem meios não tem muros, podem atravessá-los e ir para onde quiserem. Os muros são feitos para os pobres e esses pobres não se encontram apenas no hemisfério sul, mas também no hemisfério norte. Eles, os pobres, têm muros, independentemente do fato de serem de onde são. O grande paradoxo é que, no fim, os que se põem a combater, os que lutam, os que se embatem, os policiais e os policiados, são todos da mesma classe. São os pobres que estão em confrontação. E este é o trágico, ou o tragicômico, se você assim quiser, da civilização em que vivemos.

O sr. conhece bem a Igreja Católica. Como o sr. vê hoje, nestes tempos, a figura do Papa Francisco?

Você conhece a história de Davi e Golias, não é? Pois então, só uma vez o mais fraco ganhou do mais forte. Por um lado, isto desencoraja, pelo fato de não esperar que mais casos assim não possam acontecer, mas, por outro, há um precedente positivo, a ponto de que torçamos para que o mesmo possa se repetir. Os dogmáticos da Igreja Católica dizem que a conversão de Constantino [primeiro imperador romano a professar o cristianismo, no ano 312] fez muito mal a igreja, pois ela se ligou ao poder. Durante toda a época medieval, o poder transcendental, teocêntrico, da Igreja prevaleceu sobre outras esferas do poder. Aliás, o luteranismo originou o protestantismo no embate contra os excessos que se praticavam nas cúrias. A história da escravatura e do colonialismo teve, na Igreja, digamos, um paradoxo. Por um lado, ela foi cumplice e, por outro, ela denunciou. A Igreja sempre teve essas duas alas, esta dicotomia foi sempre presente: com Ricci [padre Matteo Ricci, jesuíta que é considerado o fundador das missões católicas na China, no século 16] na China, com Las Casas [Bartolomé de las Casas, frade dominicano espanhol, tido como o grande protetor das civilizações indígenas, também no século 16] nas Américas, com o processo dos jesuítas que armam os índios na América Latina. Depois, já vemos ocorrer as concordatas, que dariam aos portugueses o direito de quase um senhorio sobre as populações indígenas de Moçambique, por exemplo.

Portanto, a igreja sempre teve um processo dicotômico. A Teoria da Libertação é muito interessante nesse aspecto, pois ela faz uma opção clara, a famosa opção pelos pobres. O papa Francisco parece querer dar continuidade a essa Igreja pelos pobres. Mas ele se encontra com um monstro chamado história, que tem 17 séculos de existência e que é ligado à governação, a seus paradoxos, aos movimentos de direita etc. O que quero dizer é que, nessa luta de Davi contra Golias, o grande Golias é a própria história e a própria institucionalização. Falamos aqui de globalização; pois o primeiro autor global da história é a Igreja Católica. E ela tem uma história tal que, hoje, não se consegue mudar leis no Brasil porque historicamente sempre foi assim. Um senhor de um ministério brasileiro falaria “isto é contra a história do Brasil!”. E o Brasil tem quantos séculos? Pouco mais de cinco. A Igreja Católica tem 17, pelo menos institucionalizada. Quero dizer que esse Golias será muito difícil de abater, mas é bom que o Papa tenha posições arrojadas e irradie o que faltou à Igreja. Um teólogo, depois do Concílio Vaticano II, disse que a Igreja está sem fôlego para acompanhar a corrida dos tempos. O que o papa está tentando fazer é correr com uma bicicleta atrás de foguetes, que voam a grande velocidade. Por isso é que vejo uma luta de Davi contra Golias. Mas, se não tivermos a ousadia desses Davis, a discrepância com os tempos históricos vai ser ainda maior. Elder Dias – Brasil in “Jornal Opção”

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