Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 15 de janeiro de 2017

Brasil – Cientista brasileira que provou ligação entre zika e microcefalia mostra como a pesquisa pode beneficiar o mundo

Considerada uma das dez cientistas mais importantes de 2016 pela revista Nature, Celina Turchi diz que as pesquisas sobre a ação do vírus continuam e revela: “Ficaremos envolvidos nisso durante anos”

























Epidemias são sempre assustadoras para a po­pulação afetada, tanto que permitem a este jornalista o uso de um advérbio e um adjetivo para começar sua reportagem, algo incomum em textos jornalísticos. Isso porque uma epidemia significa centenas, às vezes milhares, de pessoas acometidas por uma doença que pode, em muitos casos, ser desconhecida. E não saber com o que se lida é, via de regra, apavorante.

Deixando de lado os adjetivos, imagine, leitor, uma epidemia de microcefalia, condição neurológica rara em que o crânio e o cérebro de uma criança recém-nascida são significativamente menores que o normal. Rara? Era, ao menos no Brasil, até 2015, ano em que centenas de casos de microcefalia começaram a aparecer pelo País, deixando a população, sobretudo as gestantes, em estado de constante alerta.

Mesmo assim, entre outubro de 2015 e outubro de 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, foram registradas 2079 novas ocorrências de microcefalia no Brasil. Uma epidemia, sem dúvidas, e a melhor frase para descrever a situação veio da médica epidemiologista Celina Turchi: “Not even in my worst nightmare as an epidemiologist had I imagined a microcephaly neonate epidemic”.

Celina disse a frase ao repórter Declan Butler, durante a entrevista que deu à britânica “Nature”, uma das principais revistas científicas do mundo e que a colocou entre os dez cientistas mais relevantes do mundo em 2016. E ela tem razão: nem em seu pior pesadelo alguém poderia imaginar centenas de crianças afetadas com uma doença tão grave quanto a microcefalia, sobretudo quando não se sabe o motivo.

Seis meses antes da epidemia, o infectologista pernambucano Carlos Brito notou que vários adultos estavam apresentando sintomas semelhantes: febre, olhos vermelhos, erupções na pele, entre outros. Não se tratava de dengue e a doença não trazia grandes repercussões sistêmicas nos pacientes. Porém, aproximadamente um mês depois, começaram a aparecer casos de Síndrome de Guillain-Barré, uma doença grave que afeta o sistema nervoso.

Em março de 2015, pesquisadores conseguiram isolar o vírus no líquido cefalorraquidiano desses pacientes e descobriram que quase todos tinham sido infectados com o vírus zika. Mas a situação só se agravou quando, seis meses depois, tomografias de crânio de bebês ainda em gestação começaram a apresentar muitas calcificações, que são como cicatrizes dentro do cérebro das crianças.

Doenças infecciosas, durante a gestação, levam a essas calcificações. O problema é que as malformações eram muito mais graves que as já conhecidas. Sem consenso entre os especialistas e com a população — a essa altura não apenas a pernambucana, pois a situação se alastrava pelo Brasil — começando a entrar em pânico, o Ministério da Saúde convocou Celina Turchi para apresentar um parecer sobre a situação. Percebendo a gravidade, a médica achou necessário montar uma força-tarefa para chegar a uma conclusão mais rápida. Nascia o Merg, sigla para Micro­cephaly Epidemic Research Group.

Carlos Brito, o epidemiologista, já havia levantado a hipótese de que os casos, tanto de Guillain-Barré quanto de microcefalia, poderiam estar associados ao vírus zika. Era necessário provar. “E provar não apenas em estudos de caso, como também em estudos de casos-controle e coorte, que essa associação era real. Isto é, que crianças com microcefalia tinham a infecção de zika e que crianças sem microcefalia, da mesma área, não tinham a infecção. E foi isso que nós fizemos”, conta Celina.

A doença causada pelo vírus zika, entre 2013 e 2014, era considerada como não causadora de grandes consequências e não havia informações, em lugar algum, de que esse vírus poderia ser tão agressivo nas gestantes e causar uma infecção congênita. Do ponto de vista epidemiológico, outros vírus eram conhecidos por causar malformações fetais, como o citomegalovírus e a rubéola, e também outros agentes infecciosos, como o treponema pallidum, bactéria causadora da sífilis. Mas não o zika.

Dessa forma, se comprovada a associação, trataria-se de uma ameaça à saúde pública, afinal, as formas de transmissão do vírus zika não são apenas através de vetor (o mosquito), mas também por transmissão sexual. Se o vírus carregava a possibilidade de causar uma doença grave de malformação congênita como a microcefalia, a infecção era um assunto deveria ser tratado com o máximo cuidado.

Celina, que atua como pesquisadora visitante no Centro de Pesquisa Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Pernam­buco há oito anos, conta que chamou todos os parceiros de projetos anteriores que tivessem a possibilidade de contribuir com a pesquisa. “Todos perceberam que, na emergência, havia a necessidade de montar esse grupo. E ainda tivemos a sorte do instituto da Fiocruz Pernambuco ter um laboratório de excelência em flavivírus, em dengue, e, consequentemente, zika”, diz.

Segundo ela, foi montado um QG de zika no instituto, sob a coordenação do diretor Sinval Brandão. “De repente, a sala tinha dezenas pesquisadores trabalhando todo dia, afinal, era uma crise na saúde pública. Éramos cerca de 30 cientistas sênior mais a equipe de mestrandos e doutorandos. Éramos um grupo grande envolvido na pesquisa”, revela.

Inicialmente, o grupo formou um projeto para avaliar crianças da mesma área assim que nasciam; crianças com e sem microcefalia. Os pesquisadores as comparavam a fim de identificar a presença de vírus ou de anticorpos nas crianças e também nas mães. As análises feitas pelo grupo conseguiu comprovar a associação entre a infecção do vírus zika durante a gestação e as malformações congênitas. O estudo preliminar foi publicado na revista “The Lancet Infectious Diseases” e ganhou o mundo.

“Hoje”, diz a médica, “é muito claro que o vírus atinge as células que darão origem ao sistema nervoso central e sabemos também que a microcefalia é apenas a ponta do iceberg. Há um conjunto de alterações. Grupos de oftalmologia, por exemplo, fizeram um trabalho muito importante mostrando alterações oftálmicas em um grupo de crianças. Há também alterações nos membros superiores e inferiores, as artrogriposes”, explica.

Fora isso, segundo Celina, há também muitas evidências de alterações auditivas, o que pôde ser visto em crianças um pouco maiores. Por isso, aponta a médica, existe a tendência em expandir essa avaliação para todas as crianças filhas de mães que apresentaram sintomas e exames laboratoriais de infecção pelo vírus zika, independente de que elas apresentem malformações evidentes.

Celina explica que isso deve acontece porque é necessário saber se existe a possibilidade de que alterações, mesmo pequenas, estejam presentes nesse grupo de crianças. “Até porque o conhecimento sobre o processo infeccioso durante a gestação ainda não está concluído, mas está sendo produzido agora”.

Um esforço internacional
























As pesquisas continuam e não devem parar tão cedo. Celina Turchi afirma que o grupo deve agora analisar um número maior de crianças com e sem microcefalia e também com outras malformações. Essa análise deverá servir, inclusive, para descartar ou não outras possibilidades de causa para as alterações, afinal, não apenas o zika pode estar causando os problemas.

“Do ponto de vista de pesquisa”, ressalta a pesquisadora, “tão importante quanto provar é também afastar outras hipóteses. E várias hipóteses foram levantadas: de que isso poderia ser reflexo de alguma vacina ou de uma contaminação ambiental. Outra hipótese dava conta de que o pyriproxyfen [larvicida] era um causador da microcefalia. Então, todas essas outras hipóteses também foram investigadas e, agora, nessa análise de um maior número de casos, poderemos excluir ou não, com mais clareza, essas possibilidades.”

E não apenas o Merg está em busca por essas informações. Celina, que é professora aposentada da Universidade Federal de Goiás (UFG) e trabalha em Pernambuco há oito anos, conta que várias instituições, de diversas partes do mundo, estão se movimentando para achar respostas. “Há, inclusive, um esforço internacional para que se tenham protocolos padronizados de pesquisa a fim de que seja possível fazer análises em conjunto para entender em que momento da gestação se tem o maior risco de as crianças apresentarem alterações tanto neurológicas quanto físicas”.

O desafio agora é dar respostas para os efeitos da infecção do zika vírus nos diferentes períodos gestacionais e saber qual a frequência de nascimento de crianças com alterações congênitas em mulheres infectadas. Nesse sentido, grupos têm se formado para pesquisar o tema. Um deles é o “Zika Plan”, um consórcio da União Europeia constituído por 25 instituições de pesquisa do mundo, sendo três brasileiras: a Universidade Estadual de Pernam­buco, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro e Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública (IPTSP) da UFG.

O consórcio se propõe a acompanhar gestantes e neonatos de forma padronizada para chegar a evidências científicas em um tempo mais curto. Para Celina, isso mostra que o Brasil será capaz de dar muitas respostas através das redes de pesquisa. “O Brasil teve um papel decisivo para se identificar essa doença. O conhecimento importa sempre, mas do ponto de vista das doenças infecciosas, em que é necessário interromper a cadeia de transmissão, esse conhecimento é fundamental para ter ações dirigidas e poder avançar, principalmente, na prevenção e no repasse de informação à sociedade”, afirma.

Maior controle

O Brasil foi o primeiro país das Américas a apresentar casos de doenças provocadas pelo zika, vírus até então comum na África e na Ásia. A suspeita é que o vírus tenha entrado no Brasil devido aos grandes eventos que o País sediou a partir de 2007, quando aconteceram os jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro, seguidos pela Copa do Mundo de 2014.

Como o vírus não era presente no Brasil, ele encontrou uma população ainda não imune aos seus efeitos, o que facilitou e muito a ocorrência de uma epidemia. Mas outros fatores facilitam a propagação de doenças associadas a vírus como o zika, a chikungunya e a dengue: a falta de controle vetorial. As cidades brasileiras têm dificuldade em controlar a procriação de vetores como o Aedes aegypti, logo, sempre existe o risco de que doenças transmitidas por vetores presentes em ambiente urbano ocorram.

Celina Turchi diz: “Convivemos com epidemias de dengue, em Goiás, por exemplo, desde a década de 1990. Chikungunya e zika são mais recentes. Então, temos elementos favoráveis para a transmissão: clima favorável, vetor e uma urbanização que transforma a cidade quase em um canteiro de proliferação. Então, as autoridades sanitárias devem ficar atentas para que possamos reduzir os casos de arboviroses”.

Para ela, casos de chikungunya devem aumentar neste ano. Já em relação ao zika, “há um controle epidemiológico que não existia antes.” Ela explica que, do ponto de vista de transmissão, são necessários três fatores: população receptível, a presença do vetor e a presença do vírus. Quando se tem uma epidemia, isso significa que aquele grupo infectado possivelmente já está imune. Por isso, quase todas as epidemias virais tendem a atingir um pico e ficar vários anos sem acontecer.

“Brasil tem centros de excelência que conseguem responder às necessidades do país”

Celina Turchi tem 64 anos e sempre trabalhou em pesquisas de epidemiologia na área de doenças infecciosas. Desem­penhou sua vida acadêmica em grande parte na Universidade Federal de Goiás (UFG), onde se aposentou. Fez mestrado, como bolsista CNPq, na London School of Hygiene & Tropical Medicine e fez doutorado pela Universidade de São Paulo (USP).

O reconhecimento de Celina, que está atualmente entre as cientistas mais importantes do mundo, e de seus colegas pesquisadores é tanto um prêmio quanto uma responsabilidade para o Brasil, afinal, isso mostra que o País tem condições de formar e manter pesquisadores de qualidade. Basta querer — ou necessitar.

O Merg (Microcephaly Epi­demic Research Group) surgiu de uma necessidade do País e mostrou que a reunião de bons pesquisadores com o investimento certo foi benéfico para a sociedade não apenas brasileira, mas mundial. O recado para os governantes é claro: esse é um investimento que vale a pena.

Celina relata que o Brasil tem centros de excelência em diferentes lugares “e fica claro agora que essas instituições conseguem responder às necessidades do país. Por isso é estratégico para qualquer país aprimorar não só as instituições de pesquisa como também investimentos pesados na formação de pesquisadores. “Marcos Carreiro – Brasil in “Jornal Opção”

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