Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Galiza - O canto da sereia

«Denantes mortos que escravos». Por cá, serão poucas as pessoas a conhecer esta frase. Mas do outro lado da fronteira que inventaram para separar Portugal da Galiza a frase não é de todo desconhecida. Remete-nos para Castelão, artista galego do século XX, que a escreveu num escudo alternativo para a Galiza. O lema remonta ao episódio histórico no Monte Medúlio, em que, numa batalha contra os invasores romanos, os galaicos se deram a própria morte antes de serem vencidos em batalha, que os levaria à escravatura. Hoje, a frase impõe-se na sociedade galega e ecoa como se de um canto se tratasse, ou não fosse guardada por uma sereia, cuja missão é lembrar-nos qual a verdadeira condição dos povos: a liberdade.

No passado mês de Julho, a Academia Galega da Língua Portuguesa (AGLP), entidade da sociedade civil galega, foi admitida na CPLP na categoria de Observador Consultivo. A decisão é histórica, e muito me orgulha enquanto falante de português. Não que eu seja um defensor acérrimo da institucionalidade e dos Estados  — não sou –, mas compreendo o valor simbólico da adesão, especialmente por a Galiza poder vir a despolarizar a visão linguística da CPLP e, de alguma forma, poder sanar o discurso onde ainda se sentem as feridas entre países colonizadores e países colonizados. Contudo, é uma adesão tardia, e muito devido à posição de Portugal nos últimos anos: lembro que, em 2011, o processo de entrada da AGLP na CPLP foi travado graças à acção de Paulo Portas, então Ministro dos Negócios Estrangeiros. Desde então, a Galiza teve de percorrer um longo percurso para conseguir estar, finalmente, com a devida representação junto de outros países e regiões lusófonas, alargando e aprofundando o diálogo. Para este desfecho, que nos anima a todos, defensores do reintegracionismo (o reintegracionismo é o movimento que considera o galego, também denominado “galego-português”, “galego internacional” ou “português da Galiza”, como mais uma variante do português e, por isso, defende o uso de uma norma ortográfica comum), foi determinante o patrocínio de Angola, que, juntamente com outros países, tem defendido a presença da Galiza na CPLP, mas também o crescente apoio por parte de outras entidades institucionais, como a Academia Brasileira de Letras, a Academia de Ciências de Lisboa ou a União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA) — com a entrada da cidade de Santiago de Compostela como membro observador, em Abril de 2017.

Apesar de todo o reconhecimento da Galiza como parte fundamental — e genética — da Língua Portuguesa, não é a legitimação estatal e institucional a definir a importância daquele território no seio da história e do futuro da nossa Língua, até porque tais reconhecimentos são, frequentemente, motivados por movimentos estratégicos, que facilmente podem conduzir à instrumentalização em função de agendas de interesses. A Galiza já era indispensável para a consciência linguística do português antes de todo o reconhecimento institucional dos últimos anos, reconhecimento esse que considero importante, mas jamais um substituto das relações vivas que sempre existiram entre galegos e outros falantes da Língua, nomeadamente com os portugueses. Sabemos como os Estados tendem a apropriar-se da memória, e a CPLP é, antes de mais, uma representação dos Estados, por isso lembro que os Estados e as instituições só se viram na inevitabilidade de reconhecer o valor da Galiza para o português porque, antes de nós, homens e mulheres, durante séculos de História, resistiram para que a memória da Língua não se perdesse — e continuarão a fazê-lo. A adesão da AGLP à CPLP é apenas mais um ponto na longa cronologia da resistência da Galiza dentro do Estado Espanhol. Sim, porque é disso que se trata, de resistência.

Começou com Castela a dominar o Reino da Galiza. O franquismo deu continuidade à opressão, proibindo o ensino do galego nas escolas, em benefício do castelhano. Hoje, ainda há uma política violenta por parte de Espanha para eliminar qualquer brecha que ponha em causa a ideia de “hispanidade”: além da forte orientação do Estado para uma política linguística na Galiza, em que o galego ainda é menorizado, somam-se os episódios de repressão policial à sociedade civil, com revistas policiais a algumas casas pela noite dentro e sem mandato; detenções pela posse de certos livros; acusações de terrorismo com base no uso do lema que Castelão inscreveu no escudo que criou para a Galiza, e com o qual iniciei este texto; intimidações a quem defende a terra da avidez das corporações; e as agressões policiais em manifestações, como as que ocorreram em Compostela, em Maio deste ano, quando vários cidadãos da cidade decidiram protestar contra a ordem de despejo da associação Escárnio e Maldizer. Convém, ainda, apontar a exclusão de que são alvo os escritores galegos que escrevem em galego internacional — ou português –, tanto por parte de instituições públicas, como a Real Academia Galega e o Conselho da Cultura Galega, como por parte de editoras e organizações de prémios literários, subservientes que são ao poder.

Em 2016, tive oportunidade de passar o mês de Outubro na Galiza, onde me confrontei com muitos destes casos. Mais do que o choque pelo que me foi relatado, surpreendeu-me o silêncio, tanto por parte da União Europeia, que parece ignorar a violência policial do Estado Espanhol — violência essa legitimada pela chamada “Lei Mordaça” –, como por parte de Portugal, que tendencialmente vive virado para os países e regiões que dominou, imerso numa narrativa imperial saudosista que lhe tolda a visão, e raramente se volta para os povos que vivem do outro lado da fronteira e com quem partilha um território comum, a Península Ibérica. A minha surpresa — e tristeza, confesso — não vem tanto pelo silêncio das nossas instituições estatais ou dos media, que esses só têm vindo a perpetuar uma narrativa em que a Galiza não tem lugar. Surpreende-me, acima de tudo, o silêncio por parte da sociedade civil, em especial o dos escritores, que pelo seu ofício deveriam conhecer o valor da Galiza para a memória e o futuro da nossa Língua. E, mais do que isso, deveriam questionar as narrativas que o Estado Português e os seus elementos de propaganda nos impõem há séculos.

Sabemos como são tratados os povos sem Estado. Facilmente nos levantamos contra a repressão aos curdos, aos palestinianos, aos tibetanos, assinamos petições, fazemos marchas e apelamos ao cumprimento dos direitos humanos. Mas temos estado em silêncio durante séculos de violência imposta à sociedade galega — salvo algumas excepções –, logo esse povo com quem partilhamos laços de irmandade e de fala. Nos países da União Europeia, a repressão pode ser mais dissimulada, mas existe. E não apenas do outro lado da fronteira. Veja-se como o bretão, o flamengo ou o provençal têm sido combatidos em França, por exemplo.

Michael Metzeltin, em “A Linguística e o Ensino da Gramática”, uma publicação da Revista da Universidade de Coimbra (1980), afirma: «Onde quer que um grupo numa sociedade detenha o poder, tratará de impor a sua ideologia aos demais membros da sociedade. Como a língua é um dos meios mais poderosos para veicular uma ideologia, mas também para a combater, o grupo dominante tratará por conseguinte de impor também a sua língua como um modelo. Para poder combater uma ideologia é preciso ser linguística e cognitivamente criativo».

Se a Galiza ainda perdura, deve-o à sua criatividade. Os diálogos mantidos desde sempre com outros povos falantes de português e o recente reconhecimento por parte das instituições são escudos que fortalecem os galegos na afirmação da sua identidade. Continuam a cantar com a sereia do escudo de Castelão, «Denantes mortos que escravos», cientes de que um povo que perde a sua Língua, a sua cultura, a sua matriz, é um povo amputado no exercício da sua liberdade. Com a crescente visibilidade da Galiza entre os outros falantes de português, espero que, especialmente quem pensa e cria na nossa Língua, possa olhar para os galegos como portadores da nossa ancestralidade, sendo que, com eles, será possível construirmos um futuro mais consciente. Espero que a recente entrada da AGLP na CPLP se traduza não tanto em leis e protocolos que acabam por cair em terreno estéril, como é recorrente acontecer, mas num olhar mais fraternal, solidário e cooperante dos outros falantes de português para com a Galiza. Para os Estados e os imaginários que pretendem veicular, somos meros actores a cumprir um papel que tem como fim o cumprimento de uma agenda, mas, na verdade, é da nossa condição percorrermos os caminhos que escolhemos percorrer, não enquanto pátria, mas enquanto comunidade, enquanto humanos que se ligam a outros humanos. No caso dos portugueses, os galegos são parte da nossa ascendência. É natural que nos queiramos encontrar. E esse encontro só será verdadeiramente livre se se mantiver orgânico e isento dos jogos de poder. É por e para isso que a sereia ainda canta. Samuel F. Pimenta – Portugal in “Revista Caliban”

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